Elogios à parte, a gravadora Universal prometeu aos fãs e apreciadores deste encontro que o registro destas noites TAMBÉM poderia ser visto em DVD, que está para sair desde o início deste ano (depois de algumas promessas de datas de lançamento)! E cá estamos nós a esperar como lusitanos aguardando ansiosamente pelo retorno de D. Sebastião!
Infelizmente em tempos de MP3, de pouca criatividade musical de determinados setores da Música Popular Brasileira contemporânea (ou de estelionato musical, como alguns apontam!), a indústria fonográfica prova, nos dias de hoje, o pão mais amassado pelo diabo que hoje atende pelo nome de capital! Por isso, lançamentos em CD ou em DVD de artistas que não ocupam com freqüência ou sensacionalismo as vitrines midiáticas como Ney Matogrosso e Pedro Luís & A Parede é algo quase como herético! E onde fica o bom gosto musical? Onde se relega o espaço para a estética musical de qualidade? Nos arquivos das gravadoras que insistem em manter trancafiadas as obras completas não apenas de artistas que já fizeram tanto pela nossa música como Ney, como também as obras de Maria Bethânia, Rita Lee, Ângela Maria, Carmen Miranda, Simone, Itamar Assumpção, Tom Zé, Tim Maia (relançar apenas o Tim Maia Racional não adianta!) e outros?!
Há tempos aguardava-se esta reunião. Em seu álbum Olhos de Farol (1999), Ney já tinha gravado duas canções com Pedro Luís & A Parede: “Miséria no Japão” e “Fazê o quê” (ambas de autoria do próprio Pedro). Em 2002, a trupe se juntou ao astro em apresentações do MPBr (projeto musical patrocinado pela Petrobrás e que resultou em um DVD com os melhores momentos das apresentações não apenas de Ney & PLAP, mas também de outros artistas). A partir daí, a parceria já estava mais do que sólida.
Na faixa que abre o CD, por exemplo, “A ordem é samba” (de Jackson do Pandeiro e Severino Ramos), vemos que eles não nos oferecem apenas samba, mas canções de um quilate diferenciado – uma musicalidade diversificada pela percussão, guitarras, o sopro de Glauc Cerejo e o finíssimo alaúde do português Pedro Jóia, além de letras de caráter crítico, juntamente com as melodias que colam no ouvido são ingredientes fundamentais deste trabalho, enfim, um encontro para ficar guardado na memória e no inconsciente coletivo da nação brasileira.
No entanto, este projeto não é composto apenas de canções novinhas em folha. A trupe revisitou alguns clássicos do cancioneiro popular brasileiro como “Assim assado” (de João Ricardo), cuja versão original está no primeiro álbum do Secos & Molhados (1973), “Disritmia” (Martinho da Vila) e “Napoleão (da ex-dupla de cantoras e compositores Luhli – hoje com H! – e Lucina que já integrava o repertório solo de Ney). Dentre as canções da nova safra, destacamos “Seres Tupy”, “Tempo afora”, “O mundo”, “Jesus” (que quase foi o título original deste trabalho!) e a própria faixa-título, composta por Antônio Saraiva.
Vagabundo nos mostra o Brasil de hoje. Uma nação de vários tipos de batuque e poesia, repleta de riquezas, mas também de profundas contradições. Infelizmente “de Porto Alegre ao Acre / a pobreza só muda o sotaque” de um país onde “O guarda belo é o herói / assim assado”. Por outro lado, “salve a agricultura celeste” de Clementina de Jesus, de Chico Science, de Chacrinha, de Ney Matogrosso, de Pedro Luís & A Parede, de Secos & Molhados e de muitos outros que têm ou tiveram “o tempo do mundo / (...) o mundo afora / onde mora a ternura ...” dentro do coração de cada um. Salve a agricultura do batuque, da poesia, de vagabundos inteligentes do Brasil!
Por isso, renegar o lançamento deste DVD é uma espécie de renegar a história cultural de uma nação. Como se acredita que este é um país no qual a história não possui lá muita importância, não me surpreenderá se um dia este lançamento jamais venha à luz. De qualquer maneira, deixo para o final alguns versos que fazem deste trabalho um Vagabundo de primeiríssima qualidade:
“NEM TODO CONSELHO É BOM NEM TODO AUTOMÓVEL, TÁXI NEM TODO SOPRO É DE SAX NEM TODO FILET, MIGNON NEM TODA ARTE É UM DOM NEM TODO VOTO É SECRETO NEM TODO AMIGO É DISCRETO NEM TODO BATUQUE É SAMBA NEM TODA CASA É DE BAMBA NEM TODO MALANDRO, ESPERTO” (Vagabundo – Antônio Saraiva)
“Todos somos filhos de Deus
Só não falamos a mesma língua”
(O Mundo – André Abujamra)
“Cada ser tem sonhos à sua maneira”
(Noite Severina – Lula Queiroga / Pedro Luís)
“Seres ou não seres
Eis a questão
Raça mutante por degradação
Seu dialeto sugere um som
São movimentos de uma nação”
(Seres Tupy – Pedro Luís)
“Mas quem é que sabe o nome desses 100 soldados
Quem é que sabe o sobrenome desses 100 soldados
100 soldados sem velório
100 guerreiros sem história
100 minutos sem memória
Sem certo e sem errado
E quem sabe me dizer se são 100 soldados?”
(Napoleão – Luhli / Lucina)
“Dizem que Jesus morreu na cruz
Mas eu tive com ele na Dutra, em Queluz
Levava na cabeça um tabuleiro de cuscuz
Cocada de céu, cocada de luz
Jesus, Jesus...”
(Jesus – Gustavo Valente / Lucas de Oliveira / Dado / André Pessoa / Rodrigo Cabelo / Beto Valente / Pedro Luís)
“A inspiração vem de onde
Vem da tristeza, alegria
Do canto da cotovia
Vem do luar do sertão
Vem de uma noite fria
Vem olha só quem diria
Vem pelo raio e trovão
No beijo dessa paixão”
(Transpiração – Alzira Espíndola / Itamar Assumpção)
“Fica a fumaça no cachimbo
Fica a semente no limão
Fica o poema no seu limbo
E na palavra um palavrão”
(Inspiração – Gilberto Mendonça Telles / Pedro Luís)