Há uma frase do filósofo Nietzsche, do livro “Além do Bem e do Mal”, na qual ele bendiz o esquecimento. “Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos”. Essa frase, aliás, foi utilizada no roteiro do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, do Charlie Kaufman, um excelente filme. Mas, digressões à parte, o mote aqui não é o esquecimento e o que pretendo não se trata de um elogio. Não vou aqui bendizer nada, ao contrário vou maldizer. Sim, é exatamente isto: trata-se de uma queixa, mais, uma execração. Uma execração à expectativa. Quero aqui execrar, abominar, tripudiar a palavra e o significado de “expectativa”. Se formos consultar o dicionário, estará lá, de forma bem clara: “expectativa: situação de quem espera a ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência, em determinado momento”. Palavra derivada do substantivo latim ex(s)pectatum, do verbo ex(s)pectáre, significa estar na expectativa de, esperar, desejar, ter esperança. E aí está nossa ruína, nossa perdição: ante um acontecimento criamos expectativa, cultivamos o desejo de que algo seja como gostaríamos que fosse e ficamos ali, esperando, esperando, ansiosos, antevendo coisas, prevendo e antecipando situações, imaginando coisas e mais coisas. E, quando chega o momento do encontro, seja ele qual for, com alguém ou alguma coisa, fato, acontecimento, pronto! Estamos prestes a nos decepcionar, a nos frustrar, a cair das nuvens (o que, segundo Machado de Assis é melhor que cair de um terceiro andar). Estava lendo ontem, na Internet, que o filme “O Código Da Vinci” foi mal recebido na sua estréia no badaladíssimo Festival de Cannes. Li que deram risada do filme (que não é uma comédia), não gostaram da atuação da Audrey Tautou (a adorável Amélie Poulain) e criticaram, vejam só, a performance do indefectível Tom Hanks, que muitos pensavam que só havia pecado no filme pelo penteado escolhido. E saíram decepcionados da “grand première”. Também ontem conversava com uma amiga sobre o novo CD do Chico Buarque, o “Carioca” e falávamos sobre a expectativa que o lançamento de um novo trabalho de um artista como Chico Buarque provoca. Há aí a questão do parâmetro. Sempre se compara o novo trabalho com o anterior ou os anteriores. É, de novo, a expectativa, a maldita expectativa, que muitas vezes nos tira o prazer livre e destituído de pré-concepções de curtir algo de maneira mais leve, que nos impede de receber de peito aberto o que vem, sem comparações, sem especulações, sem ficar imaginando como deveria ser algo que quase nunca é como imaginávamos (isso não vale para fãs incondicionais, que sempre acham tudo do seu artista favorito maravilhoso). Lembrando da frase inicial do Nietzsche, vou parafraseá-la: “Amaldiçoados os que esperam, porque deixam de aproveitar a plenitude que as coisas oferecem!” Muito mais simples seria a vida assim: você vai, sem grandes expectativas ao cinema e o filme, que até pode não ser lá essas coisas, passa a ser legal, divertido, diferente, até surpreendente, pelo simples fato de que você não entrou na fila da bilheteria ou o selecionou no jornal imaginando que ele seria desse ou daquele jeito, melhor que o anterior, parecido com aquele outro. A mesma coisa com o CD que você vai comprar, um livro, um show de samba, uma peça de teatro. Você vai simplesmente conferir como é e curte aquilo que se apresenta. Assim fica muito mais simples para a vida nos proporcionar pequenas ou grandes surpresas. O mesmo vale para as relações: se você não cria expectativas (ou ao menos expectativas demais) sobre uma pessoa, amor, amigo, parente ou colega de trabalho, não corre tanto risco de se decepcionar depois caso ela não veja o que você vê, caso ela não entenda você, caso ela não dê importância ao que é importante pra você. Ou se depois de um encontro que pra você foi perfeito ela não ligar, se ela não corresponder o teu amor à altura, se ela não for exatamente como naquele sonho que você cultivou tanto tempo. Se a gente se despir das pretensões, se a gente conseguir abrir o peito e se lançar nas experiências livres de tanta expectativa, a gente vai se permitir enxergar além do óbvio, além do que já havíamos concebido, além do esperado. Teremos uma experiência muito mais rica, como a da criança que se deixa surpreender com o novo, que faz cara de espanto, que ri, que tem os olhos brilhantes e a vontade de descobrir o que vem a seguir, sem descartar de cara as possibilidades que podem vir depois. Ou como quando você está de maneira desavisada na fila do cinema, andando na rua ou tomando aquele café numa mesa na calçada e, de repente, não mais que de repente, avista o grande amor da sua vida. Só que até então você não sabe disso. O coração não mandou recado, não mandou aviso prévio, você não esperava e eis que assim, sem nem imaginar, você encontra o amor da sua vida. E talvez ele não seja lá um Tom Hanks ou uma Audrey Tautou (fora do Código da Vinci) e nem tenha o charme e a poesia de um Chico antigo ou atual, mas àquela altura, pra quem não esperava, para quem estava só aguardando a sala do cinema abrir ou o café esfriar um pouco, você conseguirá perceber que pode ser um achado e tanto, que você estará no lucro, que aquilo pode ser não menos que absolutamente fantástico e que o sumo da felicidade não é muito mais que isso. Está ali, bem ao seu alcance e pode ser muito melhor do que você nem esperava.
Verso incidental: “Não esperar é ser livre”. (Retirado de um poema meu).
Enviado por Miss Marple
(aos sábados, com dona Anne)